Fonte imagem: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/clarice-lispector-o-amor-e-suas-faces-1.72933a |
Eu, que não escrevo romance, às vezes os leio, sobretudo os não muito longos, porque poeta tem pressa. Escreve e lê e sente intensamente a brevidade das coisas e teme o game over da vida. Por isso e outras cositas mas, boas e más, costuma ter um caixa/baú de pequenos poemas/rabiscos/rascunhos inacabados como o ser humano... algo para o post morten ou que morrerá queimado ou na lata do lixo, após uma risadinha ou um "pobrezinho", quando inadvertidamente tiver de partir para o lado de lá (quem saberá?)... deixando suas partes expostas esfaceladas em palavras não publicadas, porque inacabadas... inacabáveis de tão pronta. Aff...
Gosto de ler Clarice Lispector, isto é, gosto de ver como Clarice LispectoR me lê e me entrega de bandeja o que me nego a ver e a compreender, sem me explicar muito claramente, mas deixando-me entrever minhas próprias entrelinhas, em forma de quase reflexão... leve intuição, me construindo, sem nunca de fato me acabar. Assim me recomeço dia a dia, renovando em meu propósito de buscar o que sou no meu vir a ser... Assim seguemos sendo, sabendo que não somos, não és... não sou a única!!! Nunca estamos sós...
...MAS CLARICE LISPECTOR ESCREVEU "O 'VERDADEIRO' ROMANCE
"Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Alás, pensando melhor nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo.
Ir me obedecendo é na verdade o que faço, quando escrevo, e agora mesmo está sendo assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. às vezes ir me seguindo é tao difícil - por estar seguindo em mim o que ainda não passa de uma nebulosa - que termino desistindo.
E os romances que escrevo não passam de título? Porque seria muito difícil escrevê-los ou porque já tendo uma ideia precisa do desenrolar-se da história perco a curiosidade de escrevê-la. Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá. Agora mesmo, neste próximo instante, ou melhor há alguns instantes em que interrompi para atender ao telefone, nasceu-me um título do que seria um conto ou um romance: O mantanhês. O título é sem graça, bem sei. e sei o que seria: não se trataria de um homem das montanhas, mas da subida gradual de um homem através da vida até chegar a um cume simbólico, ou não simbólico de uma montanha , de onde ele veria o seu passado e também o que lhe restava ainda a subir, isto é, um pouco mais de futuro.
E o que vi não era bonito, nem bom, nem ruim, nem feio, era o que fatalmente a vida fizera dele e sobretudo o que fatalmente ele fizera da vida. E aí vem o problema: até que ponto fora fatal o que ele fizera na vida e esta dele? Até que ponto houvera escolha? Estou me confundindo toda com esta história que jamais escreverei.
E eu, que já viajei bastante e não quero mais viajar, como é que nunca me ocorreu nem ocorrerá jamais escrever um livro de viagens? Com perdão da palavra, sou um mistério para mim. E ainda fazendo parte deste mistério, porque leio tão pouco? O que era de se esperar é que eu tivesse verdadeira fome de leituras. Também para ver o os outros fazem. No entanto só consigo ler coisas que, se possível, caminhem direto ao que querem dizer. Não, positivamente, não me entendo, vou lentamente caminhando - e também para o quê, não sei. De um modo geral, para mais amor por tudo. É vago!mais amor por tudo" Inclusive mais amor inclui uma alerteza maior para achar bonito o que nem bonito é. E, embora a palavra humano me arrepie um pouco, de tão carregada de sentidos variados e vazios, essa palavra foi ficando, sinto que me encaminho para o mais humano.Ao mesmo tempo as coisas do mundo - os objetos - estão se tornando cada vez mais importantes para mim. Vejo os objetos sem quase me misturar om eles, vendo-os eles mesmos. Então às vezes se tornam fantásticos e livres, como se fossem coisa nascida e não feita por pessoas. Se eu for me encaminhando para o mais humano não quer dizer que eu precise perder essa qualidade que tenho às vezes de enxergar a coisa pela coisa. Porque - e aí vou eu entrando com sofisma só para me defender - se sendo gente eu consigo ir, por que haveria de perder essa capacidade ao me tornar mais gente?Ah, Deus, sinto que é puro sofisma. Aliás o sofisma como forma de raciocínio sempre me atraiu um pouco, passou a um dos meus defeitos. Explicável porque sempre tive que me defender muito, e com sofismas se consegue. Talvez, quem sabe, eu que agora me defendo menos, largue pelo caminho o raciocínio-sofisma. Talvez eu não precise mais ganhar para me defender. O sofisma faz ganhar muito em discussões - há anos que não discuto - e em explicação para si mesma das próprias ações inexplicáveis etc. De agora em diante eu gostaria de me defender assim: É porque eu quero. E que isso bastasse.
Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não nada a ver com o que escrevi. Paciência."
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